A relação entre arte e psicanálise: um recurso terapêutico transformador
- Melina Garcia Gorjon
- 8 de jan. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 2 de abr. de 2024
Na psicanálise, Freud já se interessava por arte, tendo escrito obras como, Escritores Criativos e Devaneios (1908/1996) Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua infância (1910/1996), e o O Moisés de Michelangelo (1914/2012) . A grande tese de Freud em relação à arte e aos artistas é a de que a arte facilita o processo de sublimação, apesar disso, Freud não utilizava a arte dentro da análise como recurso terapêutico. Um nome pouco lembrado e muito importante para a psicanálise e para os estudos de arteterapia é Margareth Naumburg, uma psicanalista freudiana norte americana a qual deu para a arteterapia status de recurso clínico teórico-prático na psicanálise, isso por meio do estudo sistemático o qual Naumburg se dedicou, para ela por meio da arte é possível trabalhar a psicodinâmica, principalmente os mecanismos como a
[...] repressão, projeção, identificação, sublimação e condensação. Tais mecanismos são tão evidentes nas expressões visuais dos pacientes durante a arteterapia como nas expressões verbais do tratamento psicanalítico. A expressão plástica ou gráfica espontânea é liberada na relação de transferência e lidamos com ela mediante o emprego da associação livre” (NAUMBURG, 1981, p. 388).

Na imagem, acima está Margareth Naumburg, logo abaixo temos Freud e ao seu lado Melaine Klein.
Vale lembrar que foi Jung que adotou a análise dos desenhos de seus pacientes como linguagem do inconsciente pessoal ou coletivo do sujeito, a psicoterapia de base analítica (junguiana) se serve da arte como linguagem de comunicação na terapia. Inclusive hoje em dia são terapeutas junguianos que mais se servem da arteterapia. Além disso, as formações em arteterapia disponíveis no Brasil se servem da teoria junguiana. Mas voltando à psicanálise...
Margareth Naumburg utiliza a arte como recurso terapêutico mas trabalhava com a abordagem psicanalítica, principalmente a escola inglesa. Ela confirmou sua teoria de que era possível utilizar a arte como recurso para a análise.
A relação entre arte e psicanálise é antiga, data desde a fundação da psicanalise até os dias atuais.
O principal diálogo entre psicanálise e arte é o pensamento simbólico, para Andrade (2000) a função simbólica não pode ser definida só pela linguagem verbal, outras linguagens são possíveis, como as plásticas, o movimento, som, dança e escrita. Além disso, autor afirma que “a obra de arte é a concretização simbólica da vida psíquica” (Andrade, 2000, p.33), e pode-se inferir que essa expressão artística revela elementos conscientes e inconscientes do processo de subjetivação dos sujeitos os quais são sempre atravessados pela cultura e política. O autor também sugere que por meio da arte podemos construir novas formas de compreender a realidade e assim mudar o paradigma cultural vigente, esse seria um dos papéis transformadores da arte. Uma ideia muito discutida contemporaneamente no fazer artístico que é o “fazer arte da criança”, que seria um fazer artístico livre e questionador, na qual “nesse brincar ou desobedecer tudo pode estar a serviço de criativas fantasias” (ANDRADE, 2000, p.34).

O que nos importa dizer é que a psicanálise, de um modo geral, entende o fazer artístico como “uma forma, não neurótica, de satisfação substituta” por meio da sublimação o artista poderia “ ‘superar’ e ‘recriar’ o objeto arcaico perdido” (ANDRADE, 2000, p.37). O autor também nos alerta sobre o problema de pensar a arte como um meio de “mediação” do sujeito com o mundo externo, pois para ele, e como se propõe a psicanálise, o processo artístico é muito mais complexo, cheio de nuances, relevos e atravessamentos distintos. Outro ponto que vale salientar é que,
"O artista, ou a pessoa que está fazendo um trabalho de arte, pode permitir de uma forma não destrutiva, uma regressão, na qual o ego é invadido por fantasias arcaicas e desordenadas, porém e, é por isso que não é destrutivo, permanece com um controle dessa mesma vivência regressiva" (ANDRADE, 2000, p.39).
Andrade (2000) cita o psicanalista Michel Ledoux, que estuda criação artística e psicanálise, Ledoux fala a respeito dos efeitos dos processos artísticos na reintegração do estado psíquico, e da arte como um objeto transicional, conceito de Winnicott. Pensar na arte como objeto transicional é pensar em como o criar “reelabora vivências antigas na trama ‘civilizada’ do nosso ‘eu’ atual, sem perdas de significado, nem renúncia de sentimentos” (ANDRADE, 2000, p.47-48).

Segundo a artista Fayga Ostrower (2014), a tensão psíquica influencia o processo criativo, ela pode renovar a potência criativa. A tensão pode ser lida como um acúmulo de energia, então podemos entender em termo de pulsão, sabemos que dar um destino para as pulsões é um dos motores da análise, um destino de elaboração e construção, um dos destinos possíveis seria o processo criativo.
A autora diz “ a tensão psíquica pode e deve ser elaborada. Assim nos processos criativos o essencial será poder concentrar-se e poder manter a tensão psíquica, não simplesmente descarregá-la” (OSTROWER, 2014, p.28) existe alguma descarga de energia mas existe principalmente uma reestruturação, ampliação, uma transformação. As tensões psíquicas provém muitas vezes de conflitos inconscientes, mas “ o conflito pessoal não poderá em si ser confundido nem com o potencial criativo e nem com a capacidade de elaborar” (OSTROWER, 2014, p.29). A tensão psíquica, ou esse conflito psíquico nem sempre será motor criativo, é importante lembrar que para que o conflito seja um motor, a análise deve estar acontecendo, a confiança na(o) psicanalista já deve ter sido criada, ou seja, a transferência precisa já ter sido instaurada.
Podemos entender essa ideia de Ostrower de tensão psíquica como uma energia produzida, equivalente as pulsões, ela tem destinos possíveis, pode ser investida tanto para elaborar os conflitos quanto para corroborar para a repetição desses conflitos. Por isso a tensão psíquica que envolve o processo criativo não corresponde ao conflito pessoal em si, por isso o processo criativo não seria algo somente doloroso e penoso numa espécie de reavivamento do conflito, o processo criativo pode ser esse lugar de ressignificação dos conflitos e angústias. Tudo isso irá depender de quais pontes seguras serão construídas com as intervenções da(o) psicanalista(o) no processo criativo dentro da análise.

Referências
ANDRADE, Liomar. Q. Linhas teóricas em arte-terapia. In: M. M. M. J. de Carvalho (Org.), A Arte Cura? Recursos artísticos em psicoterapia (pp. 39-54). Campinas, SP: Editorial Psy II, 1995.
ANDRADE, L. Q. Terapias Expressivas . São Paulo: Vetor, 2000.
FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio. In: FREUD, Sigmund. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-08/1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1908/1996.
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. ESB, v. XI, Rio de Janeiro: Imago, 1910/1996.
FREUD, Sigmund. O Moisés de Michelangelo. In: FREUD, Sigmund. Obras completas V. 11. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1914/2012
NAUMBURG, Margareth. A arteterapia: seu escopo e função. In: HAMMER, Emanuel F;. Aplicações clínicas dos desenhos projetivos (pp.388-392). Rio de Janeiro: Ed. Interamericana,1981.
NAUMBURG, Margareth. Ilustração de um caso: Arteterapia com uma moça esquizofrênica de 17 anos de idade. Em: HAMMER, Emanuel F;. Aplicações clínicas dos desenhos projetivos (pp. 393-425). Rio de Janeiro: Ed. Interamericana,1981.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, RJ: vozes, 2014.